Exceto os grifos das perguntas, os demais grifos são nossos.
Realidade marcada por mentira
Em Infâmia, autora trata das vítimas de falsas acusações e escândalos
20 de junho de 2011
Ubiratan Brasil - O Estado de S.Paulo
Diante das injustiças e impunidades noticiadas diariamente no Brasil, a escritora Ana Maria Machado reage com sua melhor arma: uma escrita apurada, desafiadora, denunciadora. É o caso do inédito romance Infâmia, que marca sua estreia na editora Alfaguara depois de vinte anos na Nova Fronteira. Ou ainda da seleção de artigos de Silenciosa Algazarra, editada pela Companhia das Letras. Dois livros lançados no fim de semana e que comprovam sua versatilidade.
Em Infâmia, a vida de um embaixador aposentado sai da rotina quando aparece um envelope com documentos sobre sua filha, morta em circunstâncias misteriosas. Em uma história paralela, um funcionário de repartição pública é injustamente acusado de corrupção. Tramas que permitem a Ana Maria apontar a tênue fronteira que separa verdades de mentiras. Já em Silenciosa Algazarra, título que remete aos livros mantidos fechados nas prateleiras, a escritora discute os problemas da leitura na educação. Sobre as duas obras, ela conversou com o Estado.
Com tantos escândalos em nossa sociedade de hoje, a infâmia perdeu sua força?
Pelo contrário, acho que nunca esteve tão forte. Porque os escândalos reais contribuem para uma sensação de que tudo é possível, ninguém se espanta com mais nada. Às vezes até parece que as pessoas querem acreditar que ninguém presta e não sobrou um sujeito de bem na face da terra. E a impunidade no caso dos escândalos reais contribui para essa sensação de que tudo vai mal, de modo irrecuperável, e não adianta fazer nada a não ser se indignar contra tudo e contra todos. Mas isso traz o risco de nos tornar cúmplices da injustiça e da indignidade, tratando culpados e inocentes da mesma forma, fazendo o jogo dos bandidos. E, no plano político, contribuindo para desmoralizar a democracia.
A velocidade de propagação de informação (habitualmente não checada) seria uma das causas das denúncias fáceis e mentirosas? Ou o problema é moral?
Não acho que a internet e sua velocidade na difusão da calúnia sejam uma causa desse crime, mas são uma ferramenta para multiplicá-lo. Sem dúvida, o problema tem mais causas éticas e morais, de falta de caráter. Desonestidade mesmo, de quem pretende se beneficiar com algo ou se vingar de alguém que está atrapalhando seus interesses. E em sua propagação o bandido usa todas as armas a seu alcance para se beneficiar. A internet pode ser uma delas, com sua pressa favorável à leviandade, suprimindo a apuração cuidadosa, o cuidado em checar os fatos e dar aquela conferida conscienciosa... A ignorância é outra ferramenta que ajuda a propagar a calúnia, porque se associa a uma saturação compreensível diante dos escândalos reais e impede que se analise criticamente a versão que está sendo impingida como verdadeira. E é impressionante como pessoas aparentemente sensatas são capazes de repetir absurdos que não se sustentam sem nem parar para pensar. Puramente porque reagem quase como um reflexo de indignação, despejando acusações pesadas meramente diante de insinuações. Diariamente as páginas de cartas de leitores dos jornais trazem algum exemplo desse fenômeno.
O que lhe parece o poder da ficção em interferir na realidade e até de criar novas realidades?
O poder da ficção, da imaginação, está exatamente nisso e, pelos séculos afora, em sua forma literária, vem criando as narrativas que ajudaram a construir artes como a literatura, o teatro, o cinema. Realidades artísticas. E, além disso, tem tanta força que cria realidades alternativas, que permitem discutir criticamente a realidade concreta circundante. É muito poder, sim, mas é positivo - tanto quanto o resultado é uma obra de arte como quando o processo se manifesta nos sonhos ou em mecanismos que ajudem o indivíduo a examinar outras possibilidades, novos caminhos. Muitas hipóteses filosóficas ou experiências científicas também nascem do que se inventa, da ficção. O que tem acontecido ultimamente, e é muito pernicioso, é que essa ficção algumas vezes está se misturando ao jornalismo (e com isso, alimentando a História que se fará no futuro). Isso é que me parece muito grave: a manipulação das consciências a fim de enganar o cidadão. Porque traz versões como se fossem fatos. Não se apresenta como algo inventado, fictício, hipotético ou imaginado, mas como se fosse absolutamente verdadeiro. Aí é que está o jogo perverso e desonesto. E tem consequências funestas na realidade: causa dor, faz sofrer, leva inocentes ao desespero. Como se sente um adolescente ao ver seu pai execrado publicamente, sem poder se defender, acusado de algo que não fez e não tem como provar? Quem repete leviandades de forma irresponsável não pensa nisso? E quem as publica, dias a fio, sem qualquer prova? É um bullying elevado à enésima potência... Soube de casos de alguns que não se recuperaram jamais, uma que se recusou a voltar à escola e passava os dias chorando, um que teve de ser internado, uma menina que se suicidou...
Amargura e tédio são os grandes males contemporâneos?
Ih, acho que sou uma sortuda... Não vivo imersa em amargura nem tédio. Mesmo ao tratar de um tema tão repugnante, creio que minha maneira de me aproximar dele é um tanto positiva, a partir de certas premissas que me parecem fundamentais naquilo que nos faz humanos: a solidariedade com as vítimas acusadas injustamente, a compaixão pela dor dos outros, a procura da verdade, a sede de justiça. Quero estar do lado dos caluniados - no plano público ou na intimidade. O meu livro aborda esses diferentes lados. Tanto se ocupa das denúncias levianas e sem fundamentos veiculadas pelos jornais como fala da mulher de um embaixador que fica sem defesa no exterior quando ele a acusa de louca para interditá-la, sem que ela possa se defender. Há uma disparidade de forças, pois ele é, ao mesmo tempo, juiz, promotor e carrasco. Tem todo o poder concentrado em si. Outro aspecto do romance é a frequência de dossiês espúrios na história política do Brasil: as cartas falsas atribuídas a Artur Bernardes, o plano Cohen, a Carta Brandi, os aloprados, o dossiê que virou banco de dados, e tantos outros. Não é caso de tédio, mas sim de preocupação. E de tentativa de análise. Por que esse tipo de expediente é tão recorrente em nossa história?
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